Anda para aí uma praga de gente boa que incomoda os outros, como eu. São contra os vícios, contra os pecados, contra o excesso de sentimentos. Não se enervam, não levantam a voz, não discutem. Não sabem quem é o Sá Pinto, não percebem como é que se pode perder horas diante da televisão a ver futebol e não entendem que um homem possa ler simultaneamente Os sete pilares da sabedoria e A Bola. Nem entendem sequer a própria ideia de competição no desporto: se lhes acontece jogar volley de praia ou matraquilhos no Jardim Cinema, tanto lhes faz perder como ganhar – só jogam para se divertir.
Não fumam, não bebem, não comem carne. Olham-me com um ar condenável quando acendo um cigarro e ficam verdadeiramente incomodados quando lhes sopro para cima o fumo de um Monte Cristo nº 4. São macrobióticos, vegetarianos ou especialistas em comida alternativa, como unção de algas com finas fatias de peixe branco de Vanuatu. Olham-me enjoados se encomendo umas mãozinhas de vitela com grão e desmaiam de terror à ideia de serem convidados para uma matança de porco.
Acreditam em qualquer coisa vagamente mística e nas virtudes budistas da temperança. Ambas as fés lhes servem a funda convicção de que o mundo é demasiado humano para o seu gosto. Gostam de conversas calmas, de sentimentos controlados, de comida sem cheiro, de móveis de design, de linhas depuradas e rectas, como o próprio corpo que cultivam. Enfim, acreditam nessa verdade, mais perigosa do que todas as outras, que é a possibilidade de um mundo perfeito.
Todavia, ao contrário dos budistas, não são dados a renúncias nem desprezam o dinheiro ou as coisas materiais. Mas desprezam os gastos absurdos de dinheiro, aqueles que se consomem no próprio acto, como um Barca Velha de 94, uma garrafa de Veuve Clicquot aberta às três da manhã para ver melhor o cometa, ou um havano enrolado à mão para ouvir melhor o barulho das cigarras no campo. São herdeiros da civilização judaicocristã e, sem o saber, abominam tudo o que representa a herança do mundo greco-romano e árabe que fez do Mediterrâneo uma civilização única e inimitável. Fazem-me lembrar a oração do Papa Calisto II, a exorcizar o cometa Halley, à sua passagem pela terra, em 1452: «Livrai-nos, Senhor, do mal, do turco e do cometa».
Se são homens, não têm filhos porque lhes estragam a carreira e tiram a «liberdade»; se são mulheres, estragam-lhes a figura e a «liberdade». Sim, porque eles são livres: não prestam tributo ao vício e só respondem por si próprios. A «liberdade» ensinou-os a 83 planear, a prever; fogem do acaso e das circunstâncias como se foge de um intruso nocturno.
O que fazer com esta gente? Como ousar entendermo-nos, se a simples aproximação parece constrangê-los? Somos um monte de pecados e vícios que bate à porta da virtude. E é desesperadamente verdade que eles estão certos: é certo que viverão muito mais do que nós; é certo que eles estão livres de colesterol, de cirroses e de enfisemas pulmonares; é certo que não morrerão de stress, nem de desgostos de amor, nem de aflições paternais; é provável que nem sequer morram de coisa alguma.
Quem sabe, talvez este seja o caminho da imortalidade? Livrai-os, Senhor, dos males do mundo, da condição de homens, dos caracóis com orégãos e do cheiro das sardinhas assadas.
Sim, dai-lhes Senhor o eterno descanso.
“ Não te deixarei morrer, David Crocket” - Miguel Sousa Tavares.
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